Nessa terça-feira (27/11/2012), o coronel Freitas,
comandante do policiamento ostensivo da Brigada Militar de Porto Alegre, no
Estado do Rio Grande do Sul, veio a público para anunciar que a emocionante e
tradicional ‘avalanche’, realizada por torcedores gremistas após a marcação de
gols da equipe tricolor, não mais ocorrerá na nova Arena.
Em suas justificativas alegou que a legislação vigente
no Brasil proíbe a existência de estádios sem a instalação de cadeiras em todos
os setores:
“Isso é uma
questão de legislação, que diz que todos os estádios precisam ter 100% de
cadeiras. Esta questão já foi comunicada para a presidência da Arena, para a
atual e para a futura presidência do Grêmio sobre essa questão da avalanche
aqui nesse tipo de estádio não acontecer mais. (...) Com um estádio desse porte
como a Arena, precisa ter cadeira para todo o público sentar. Em outros
estádios menores, dependendo das condições se usa a arquibancada. A questão é o
espaço exclusivo das pessoas ficarem em pé. Mesmo que não exista avalanche. É o
ficar em pé em estádios onde tenha condição para a pessoa sentar. Não temos nada contra a avalanche”[1].
Após tomar nota do pronunciamento do órgão responsável
pela segurança nos estádios gaúchos, o Grêmio anunciou que pretende dialogar
para resolver o impasse criado[2]. Por sua vez, a torcida
‘Geral do Grêmio’, responsável pelo belo espetáculo criado nas arquibancadas,
se mostrou irritada com a mais nova proibição e também divulgou um comunicado[3].
Pois bem. Caros leitores, escrevo esse breve artigo na
tentativa de esclarecer a gritante incoerência jurídica aduzida pelo nobre
coronel da Brigada Militar.
Ao contrário do que fora dito, a legislação brasileira
que trata do tema em questão, qual seja, Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003),
em nenhum de seus dispositivos ousou determinar a instalação integral de
cadeiras nas arquibancadas dos mais de 623 estádios construídos no país[4].
O parágrafo primeiro do artigo 22 do Estatuto do
Torcedor é claro no sentido de facultar ao clube mandante, a manutenção ou
construção de áreas reservadas a determinado número de pessoas, sem que nesses
espaços sejam necessárias a instalação de cadeiras devidamente numeradas, senão
veja-se:
Art. 22. São direitos do torcedor partícipe:
I - que todos os
ingressos emitidos sejam numerados; e
II - ocupar o local correspondente ao
número constante do ingresso.
§ 1o O disposto no inciso II não se aplica aos
locais já existentes para assistência em pé, nas competições que o
permitirem, limitando-se, nesses locais, o número de pessoas, de acordo com
critérios de saúde, segurança e bem-estar.
Ademais,
o artigo 23 do mesmo diploma legal obriga, a depender da competição a ser
disputada, a Confederação Brasileira de Futebol e suas demais filiadas, a apresentarem
ao Ministério Público dos Estados e do Distrito Federal, laudos técnicos comprovando a real
capacidade de público dos estádios, bem como as demais condições de segurança.
Ato
contínuo referido artigo foi regulamentado pelo Decreto Nº 6.795, de 16 de Março de 2009, o qual, por seu turno, determinou que o Ministério do
Esporte estabeleceria posteriormente os requisitos mínimos que deveriam ser
contemplados nos laudos técnicos acima mencionados.
Destarte, veio a lume a PORTARIA Nº 238/2010, em substituição a
portaria 124/2009, responsável por estabelecer tais requisitos.
Assim, compulsando os requisitos mínimos
impostos pelos agentes e órgãos responsáveis pela segurança nos estádios
nacionais, in casu, em âmbito estadual, vistoriados pela Brigada Militar e
Polícia Militar do Rio Grande do Sul, alguns pontos previstos no anexo I[5] da Portaria do Ministério do Esporte,
chamam atenção justamente por irem em sentido oposto ao que incoerentemente
sustentou o coronel Freitas.
São eles:
39. Qual a quantidade de assentos
encadeirados?
40. Qual é a capacidade real do estádio,
considerando torcedores sentados e em
pé?
43. Os locais reservados a torcedores
sentados são numerados?
Com efeito, conforme sustentou
o coronel, se “a legislação diz que todos os
estádios precisam ter 100% de cadeiras”, por quê o laudo técnico do Ministério
do Esporte haveria de considerar a existência de torcedores em pé?
Outrossim, se já não bastasse a constatação de que a
própria legislação infra-constitucional vigente em nosso país considera, no
momento de realização de vistorias, a possibilidade de estádios possuírem
locais para torcedores permanecerem em pé, o próprio Regulamento Geral das
Competições da CBF de 2013[6],
divulgado nesse último dia 21 de Novembro, orientou-se no mesmo sentido, quando
em seu artigo 14 e seguintes, determinou que os estádios que receberem partidas
organizadas pela Confederação Brasileira de Futebol e demais federações, deverão
estar de acordo com as previsões da
Lei 10.671/2003, do Decreto nº. 6.795/09, do Poder Executivo e da Portaria
238/10 do Ministério do Esporte[7].
Portanto,
o que se quer deixar claro, é que no ordenamento jurídico pátrio inexiste a
obrigatoriedade presente no discurso do chefe do policiamento ostensivo gaúcho,
o que invariavelmente, desmistifica a impossibilidade da torcida tricolor
continuar com o seu particular tipo de comemoração.
Quiçá, estava o comandante a se referir
ao Caderno de Encargos da FIFA[8], o qual, por sua vez, regulamenta
condições específicas para construção de Arenas que receberão jogos de Copa do
Mundo, como, por exemplo, a instalação de cadeiras em todos os locais do
estádio previsto no item 6.1.
Daí
a razão de que quando cogitou-se a possibilidade da Arena do Grêmio ser uma das
arenas a sediar partidas da Copa do Mundo de 2014, muito se falou que iriam ser
instaladas cadeiras, na região reservada aos membros da ‘Geral do Grêmio’,
responsáveis pela comemoração no estilo das barras bravas da Argentina e
Uruguai, nos moldes do que se vê no Estádio Signal Iduna Park do Borussia
Dortmund, para então atenderem as
exigências da entidade máxima do futebol mundial.
Soa
como extremamente absurda a fala dos representantes militares gaúchos, responsáveis
pela segurança dos torcedores em dias de jogos, que hodiernamente, além do
estádio Olímpico Monumental, outros vários estádios como o Beira Rio (que está
em obras) e mais recentemente o Orlando Scarpelli do Figueirense, os quais,
inegavelmente não congregam as mesmas condições de segurança apresentadas pela
nova Arena do Grêmio, quando o Grêmio atua fora de casa, se tornam ‘vítimas’
da avalanche da Geral do Grêmio, sem que a nobre Polícia e Brigada militar
sequer se manifestassem contra.
Cabe
destacar que no universo da avalanche tricolor operam-se os efeitos da ‘Teoria do Consentimento do Ofendido’, a qual, em
linhas gerais, tem o condão de absorver posterior responsabilidade civil
indenizatória dos organizadores bem como dos órgãos responsáveis pela segurança, por danos eventualmente sofridos por torcedores em razão de dita comemoração.
Nessa
senda, há decisão proferida pela
Em. Des. Ires Helena Medeiros Nogueira na Apelação Nº 70024562118 do Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul, onde restou afastado o nexo de causalidade.
Transcrevo na íntegra trecho da decisão:
(...) Outro fator relevante, in casu, é o fato de o
autor ser frequentador assíduo de estádios de futebol e conhecer a fama da
“Alma Castelhana”, torcida famosa pelas brigas e confusões em todos os jogos em
que estão presentes, não sendo demais lembrar que a “avalanche” já derrubou
diversas pessoas no fosso. O próprio depoente Jorge Conceição confirmou a
intenção de assistir à partida naquele local, mesmo sabendo do perigo ali
presente. O acidente, de certa forma, teve a contribuição do requerente. Nessas
condições, inexistindo nexo causal in casu, isto é, ausente um dos elementos da
responsabilidade civil, não há falar em indenização por danos morais.
Logo, em apertado resumo,
não haveriam motivos para a Brigada Militar se preocupar, haja vista que os
próprios torcedores já consentem quanto a futuros prejuízos que possam vir a
sofrer.
Mister que os membros de segurança dos estádios gaúchos
comecem imediatamente a se preocuparem com um melhor preparo dos seus efetivos,
tendo em vista um notável número de decisões do Tribunal de Justiça Gaúcho que
já condenaram ações despreparadas e violentas de agentes de segurança contra
torcedores.[9]
Finalmente, vejo que o vanguardista Estatuto do Torcedor acabou por trazer um sério dilema aos
torcedores frequentadores dos estádios, pois ao passo que pretende garantir o
máximo de segurança, oportunizou paralelamente ao Poder de Polícia, inibir
emoções que são particulares de um espetáculo como o futebol. Nesse histórico, primeiro
avistamos a proibição de fogos de artificio e sinalizadores, e agora, mais
recentemente, presenciamos a impossibilidade de sequer serem realizados
protestos por meio de faixas ou cartazes que tão somente estavam a exprimir a
liberdade de expressão assegurada por força da Constituição Brasileira de 1988[10].
Recordo aos leitores que pelas palavras do
sociólogo francês Nicolas Hourcade, durante o “II Simpósio Hooliganismo e Copa
2014” realizado na cidade de Campinas – SP, a França vive desde o ano de 2010, fenômeno
semelhante ao que atravessa o Brasil, quando lá se iniciou um
processo seletivo para a formação de torcedores consumidores através da cobrança de altos valores na compra dos ingressos.
Como muito provavelmente irá ocorrer em nossas praças
desportivas, os dirigentes franceses que conduziram referido processo, não foram
capazes de manter a atratividade do espetáculo que os ultras realizavam,
tornando as partidas um lazer sem brilho. Fica claro que a experiência há
tempos dá sinais de que os responsáveis pela organização do futebol brasileiro
poderiam mirar suas atenções na resolução de problemas mais graves, como são os
roubos, furtos e lesões corporais que semanalmente são registrados nos Juizados
Especiais instalados nos Estádios.
Como
sustentei em artigo publicado na Revista Brasileira de Direito Desportivo,
Edição 21, ao invés dos clubes continuarem a pagar a inconstitucional taxa de
serviço[11]
cobrada pelos ineficientes serviços de polícia estatal, deveríamos avistar investimentos sendo realizados em segurança privada ‘low-profile[12]’,
através de uma captura efetiva, ágil e silenciosa do infrator.
Desta
forma, poderíamos gradativamente conscientizar e reeducar os torcedores,
inclusive promovendo a reinserção da venda e do consumo de bebidas alcoólicas
nos estádios brasileiros.
É como penso.
Forte Abraço!
FELIPE TOBAR
[3] Disponível em:
http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/esportes/gremio/noticia/2012/11/geral-publica-nota-de-repudio-a-decisao-da-brigada-militar-3964212.html
[4]Conforme dados do
CNEF – Cadastro Nacional dos Estádios de Futebol. Disponível em:
[http://casadotorcedor.blogspot.com.br/2009/08/mapa-dos-estadios-brasileiros.html].
[5]Disponível em: http://www.esporte.gov.br/arquivos/legislacao/anexoI.pdf
[6]Disponível em: http://www.cbf.com.br/Not%C3%ADcias/2012/11/21/Regulamento%20Geral%20das%20Competi%C3%A7%C3%B5es%202013
[7]Art 14 – Quaisquer competições somente poderão ser realizadas
em estádios devidamente aprovados pelas autoridades competentes, conforme
estabelecem as leis e normas em vigor e o presente RGC. §1º - Os estádios
deverão atender às exigências da Lei 10.671/2003, do Decreto nº. 6.795/09, do
Poder Executivo e da Portaria 238/10 do Ministério do Esporte.
[8] Disponível em: http://www.slideshare.net/marcelogreuel/caderno-de-encargos-fifa#btnNext
[9] Nesse
particular são as Apelações Cíveis nºs 70029376076; 70031596547 e;
70018130765.
[10] Polêmicas
das faixas exibidas no Estádio Arena Joinville e Aflitos contra a arbitragem da
Confederação Brasileira de Futebol e determinados membros da Arbitragem dos quadros da CBF. Referidas notícias foram alvo de postagem nesse espaço anteriormente.
[11] Nesse
sentido é a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADIn 1.942-MC/PA,
rel. Min. Moreira Alves.
[12] “O sistema low-profile, posto
em prática na Euro 2004, em algumas cidades de Portugal, foi assim definido em
tópicos pelos Drs. Clifford e Adanga, ambos da Universidade de Liverpool: Fora
da vista, mas próximo: Misturar policiais devidamente caracterizados com uma
identificação fácil, bem visível (coletes nas cores verde limão), com policiais
à paisana. Os fardados, em menor número, e numa distância que dificulte a
provocação dos vândalos, que eram imediatamente identificados e presos pelos
policiais à paisana. Resposta rápida: Apesar de uma presença visível de um
pequeno número de policiais (facilmente identificáveis pelas suas roupas) os
potenciais incidentes eram imediatamente contidos, numa resposta veloz e
apropriada (sem o uso extremo e desafiador da força policial), o que acaba por
acalmar a situação. Os limites de atuação, seja dos torcedores, seja dos
policiais é claro para ambas as partes, que se conhecem. A atuação era tão
rápida e de sucesso, que outros torcedores nem percebiam que haviam policiais à
paisana entre eles. Como os torcedores causadores de problemas eram previamente
identificados, facilitava a ação dos policiais durante os jogos, que ficavam
atentos aos torcedores problema”. Disponível em: [http://globoesporte.globo.com/platb/pr-torcedor-coritiba/tag/pacificacao-dos-torcedores/].