quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A PROIBIÇÃO DA AVALANCHE TRICOLOR À LUZ DO ESTATUTO DO TORCEDOR.



Nessa terça-feira (27/11/2012), o coronel Freitas, comandante do policiamento ostensivo da Brigada Militar de Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul, veio a público para anunciar que a emocionante e tradicional ‘avalanche’, realizada por torcedores gremistas após a marcação de gols da equipe tricolor, não mais ocorrerá na nova Arena.
Em suas justificativas alegou que a legislação vigente no Brasil proíbe a existência de estádios sem a instalação de cadeiras em todos os setores:
 “Isso é uma questão de legislação, que diz que todos os estádios precisam ter 100% de cadeiras. Esta questão já foi comunicada para a presidência da Arena, para a atual e para a futura presidência do Grêmio sobre essa questão da avalanche aqui nesse tipo de estádio não acontecer mais. (...) Com um estádio desse porte como a Arena, precisa ter cadeira para todo o público sentar. Em outros estádios menores, dependendo das condições se usa a arquibancada. A questão é o espaço exclusivo das pessoas ficarem em pé. Mesmo que não exista avalanche. É o ficar em pé em estádios onde tenha condição para a pessoa sentar. Não temos nada contra a avalanche”[1].
Após tomar nota do pronunciamento do órgão responsável pela segurança nos estádios gaúchos, o Grêmio anunciou que pretende dialogar para resolver o impasse criado[2]. Por sua vez, a torcida ‘Geral do Grêmio’, responsável pelo belo espetáculo criado nas arquibancadas, se mostrou irritada com a mais nova proibição e também divulgou um comunicado[3].   
Pois bem. Caros leitores, escrevo esse breve artigo na tentativa de esclarecer a gritante incoerência jurídica aduzida pelo nobre coronel da Brigada Militar.
Ao contrário do que fora dito, a legislação brasileira que trata do tema em questão, qual seja, Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003), em nenhum de seus dispositivos ousou determinar a instalação integral de cadeiras nas arquibancadas dos mais de 623 estádios construídos no país[4].
O parágrafo primeiro do artigo 22 do Estatuto do Torcedor é claro no sentido de facultar ao clube mandante, a manutenção ou construção de áreas reservadas a determinado número de pessoas, sem que nesses espaços sejam necessárias a instalação de cadeiras devidamente numeradas, senão veja-se:
Art. 22. São direitos do torcedor partícipe:
I - que todos os ingressos emitidos sejam numerados; e                           
II - ocupar o local correspondente ao número constante do ingresso.                  
§ 1o O disposto no inciso II não se aplica aos locais já existentes para assistência em pé, nas competições que o permitirem, limitando-se, nesses locais, o número de pessoas, de acordo com critérios de saúde, segurança e bem-estar.
      Ademais, o artigo 23 do mesmo diploma legal obriga, a depender da competição a ser disputada, a Confederação Brasileira de Futebol e suas demais filiadas, a apresentarem ao Ministério Público dos Estados e do Distrito Federal, laudos técnicos comprovando a real capacidade de público dos estádios, bem como as demais condições de segurança.
         
      Ato contínuo referido artigo foi regulamentado pelo Decreto Nº 6.795, de 16 de Março de 2009, o qual, por seu turno, determinou que o Ministério do Esporte estabeleceria posteriormente os requisitos mínimos que deveriam ser contemplados nos laudos técnicos acima mencionados.

       Destarte, veio a lume a PORTARIA Nº 238/2010, em substituição a portaria 124/2009, responsável por estabelecer tais requisitos.
  
     Assim, compulsando os requisitos mínimos impostos pelos agentes e órgãos responsáveis pela segurança nos estádios nacionais, in casu, em âmbito estadual, vistoriados pela Brigada Militar e Polícia Militar do Rio Grande do Sul, alguns pontos previstos no anexo I[5] da Portaria do Ministério do Esporte, chamam atenção justamente por irem em sentido oposto ao que incoerentemente sustentou o coronel Freitas.

 São eles:

39. Qual a quantidade de assentos encadeirados?

40. Qual é a capacidade real do estádio, considerando torcedores sentados e em pé?

43. Os locais reservados a torcedores sentados são numerados?

         Com efeito, conforme sustentou o coronel, se “a legislação diz que todos os estádios precisam ter 100% de cadeiras”, por quê o laudo técnico do Ministério do Esporte haveria de considerar a existência de torcedores em pé?

Outrossim, se já não bastasse a constatação de que a própria legislação infra-constitucional vigente em nosso país considera, no momento de realização de vistorias, a possibilidade de estádios possuírem locais para torcedores permanecerem em pé, o próprio Regulamento Geral das Competições da CBF de 2013[6], divulgado nesse último dia 21 de Novembro, orientou-se no mesmo sentido, quando em seu artigo 14 e seguintes, determinou que os estádios que receberem partidas organizadas pela Confederação Brasileira de Futebol e demais federações, deverão estar de acordo com as previsões da Lei 10.671/2003, do Decreto nº. 6.795/09, do Poder Executivo e da Portaria 238/10 do Ministério do Esporte[7].
        
           Portanto, o que se quer deixar claro, é que no ordenamento jurídico pátrio inexiste a obrigatoriedade presente no discurso do chefe do policiamento ostensivo gaúcho, o que invariavelmente, desmistifica a impossibilidade da torcida tricolor continuar com o seu particular tipo de comemoração.
         
           Quiçá, estava o comandante a se referir ao Caderno de Encargos da FIFA[8], o qual, por sua vez, regulamenta condições específicas para construção de Arenas que receberão jogos de Copa do Mundo, como, por exemplo, a instalação de cadeiras em todos os locais do estádio previsto no item 6.1.
         
         Daí a razão de que quando cogitou-se a possibilidade da Arena do Grêmio ser uma das arenas a sediar partidas da Copa do Mundo de 2014, muito se falou que iriam ser instaladas cadeiras, na região reservada aos membros da ‘Geral do Grêmio’, responsáveis pela comemoração no estilo das barras bravas da Argentina e Uruguai, nos moldes do que se vê no Estádio Signal Iduna Park do Borussia Dortmund,  para então atenderem as exigências da entidade máxima do futebol mundial.
         
         Soa como extremamente absurda a fala dos representantes militares gaúchos, responsáveis pela segurança dos torcedores em dias de jogos, que hodiernamente, além do estádio Olímpico Monumental, outros vários estádios como o Beira Rio (que está em obras) e mais recentemente o Orlando Scarpelli do Figueirense, os quais, inegavelmente não congregam as mesmas condições de segurança apresentadas pela nova Arena do Grêmio, quando o Grêmio atua fora de casa, se tornam ‘vítimas’ da avalanche da Geral do Grêmio, sem que a nobre Polícia e Brigada militar sequer se manifestassem contra.
       
       Cabe destacar que no universo da avalanche tricolor operam-se os efeitos da  ‘Teoria do Consentimento do Ofendido’, a qual, em linhas gerais, tem o condão de absorver posterior responsabilidade civil indenizatória dos organizadores bem como dos órgãos responsáveis pela segurança, por danos eventualmente sofridos por torcedores em razão de dita comemoração.
        
       Nessa senda, há decisão proferida pela Em. Des. Ires Helena Medeiros Nogueira na Apelação Nº 70024562118 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde restou afastado o nexo de causalidade. Transcrevo na íntegra trecho da decisão:

(...) Outro fator relevante, in casu, é o fato de o autor ser frequentador assíduo de estádios de futebol e conhecer a fama da “Alma Castelhana”, torcida famosa pelas brigas e confusões em todos os jogos em que estão presentes, não sendo demais lembrar que a “avalanche” já derrubou diversas pessoas no fosso. O próprio depoente Jorge Conceição confirmou a intenção de assistir à partida naquele local, mesmo sabendo do perigo ali presente. O acidente, de certa forma, teve a contribuição do requerente. Nessas condições, inexistindo nexo causal in casu, isto é, ausente um dos elementos da responsabilidade civil, não há falar em indenização por danos morais.

Logo, em apertado resumo, não haveriam motivos para a Brigada Militar se preocupar, haja vista que os próprios torcedores já consentem quanto a futuros prejuízos que possam vir a sofrer.

Mister que os membros de segurança dos estádios gaúchos comecem imediatamente a se preocuparem com um melhor preparo dos seus efetivos, tendo em vista um notável número de decisões do Tribunal de Justiça Gaúcho que já condenaram ações despreparadas e violentas de agentes de segurança contra torcedores.[9]

Finalmente, vejo que o vanguardista Estatuto do Torcedor  acabou por trazer um sério dilema aos torcedores frequentadores dos estádios, pois ao passo que pretende garantir o máximo de segurança, oportunizou paralelamente ao Poder de Polícia, inibir emoções que são particulares de um espetáculo como o futebol. Nesse histórico, primeiro avistamos a proibição de fogos de artificio e sinalizadores, e agora, mais recentemente, presenciamos a impossibilidade de sequer serem realizados protestos por meio de faixas ou cartazes que tão somente estavam a exprimir a liberdade de expressão assegurada por força da Constituição Brasileira de 1988[10].

Recordo aos leitores que pelas palavras do sociólogo francês Nicolas Hourcade, durante o “II Simpósio Hooliganismo e Copa 2014” realizado na cidade de Campinas – SP, a França vive desde o ano de 2010, fenômeno semelhante ao que atravessa o Brasil, quando lá se iniciou um processo seletivo para a formação de torcedores consumidores através da cobrança de altos valores na compra dos ingressos.

Como muito provavelmente irá ocorrer em nossas praças desportivas, os dirigentes franceses que conduziram referido processo, não foram capazes de manter a atratividade do espetáculo que os ultras realizavam, tornando as partidas um lazer sem brilho. Fica claro que a experiência há tempos dá sinais de que os responsáveis pela organização do futebol brasileiro poderiam mirar suas atenções na resolução de problemas mais graves, como são os roubos, furtos e lesões corporais que semanalmente são registrados nos Juizados Especiais instalados nos Estádios.

Como sustentei em artigo publicado na Revista Brasileira de Direito Desportivo, Edição 21, ao invés dos clubes continuarem a pagar a inconstitucional taxa de serviço[11] cobrada pelos ineficientes serviços de polícia estatal, deveríamos avistar  investimentos sendo realizados em segurança privada ‘low-profile[12]’, através de uma captura efetiva, ágil e silenciosa do infrator.
Desta forma, poderíamos gradativamente conscientizar e reeducar os torcedores, inclusive promovendo a reinserção da venda e do consumo de bebidas alcoólicas nos estádios brasileiros.
É como penso.
Forte Abraço!
FELIPE TOBAR


[3] Disponível em: http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/esportes/gremio/noticia/2012/11/geral-publica-nota-de-repudio-a-decisao-da-brigada-militar-3964212.html
[4]Conforme dados do CNEF – Cadastro Nacional dos Estádios de Futebol. Disponível em: [http://casadotorcedor.blogspot.com.br/2009/08/mapa-dos-estadios-brasileiros.html].
[5]Disponível em: http://www.esporte.gov.br/arquivos/legislacao/anexoI.pdf
[6]Disponível em: http://www.cbf.com.br/Not%C3%ADcias/2012/11/21/Regulamento%20Geral%20das%20Competi%C3%A7%C3%B5es%202013
[7]Art 14 – Quaisquer competições somente poderão ser realizadas em estádios devidamente aprovados pelas autoridades competentes, conforme estabelecem as leis e normas em vigor e o presente RGC. §1º - Os estádios deverão atender às exigências da Lei 10.671/2003, do Decreto nº. 6.795/09, do Poder Executivo e da Portaria 238/10 do Ministério do Esporte.
[8] Disponível em: http://www.slideshare.net/marcelogreuel/caderno-de-encargos-fifa#btnNext
[9] Nesse particular são as Apelações Cíveis nºs 70029376076; 70031596547  e; 70018130765.
[10] Polêmicas das faixas exibidas no Estádio Arena Joinville e Aflitos contra a arbitragem da Confederação Brasileira de Futebol e determinados membros da Arbitragem dos quadros da CBF. Referidas notícias foram alvo de postagem nesse espaço anteriormente.
[11] Nesse sentido é a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADIn 1.942-MC/PA, rel. Min. Moreira Alves.
[12] “O sistema low-profile, posto em prática na Euro 2004, em algumas cidades de Portugal, foi assim definido em tópicos pelos Drs. Clifford e Adanga, ambos da Universidade de Liverpool: Fora da vista, mas próximo: Misturar policiais devidamente caracterizados com uma identificação fácil, bem visível (coletes nas cores verde limão), com policiais à paisana. Os fardados, em menor número, e numa distância que dificulte a provocação dos vândalos, que eram imediatamente identificados e presos pelos policiais à paisana. Resposta rápida: Apesar de uma presença visível de um pequeno número de policiais (facilmente identificáveis pelas suas roupas) os potenciais incidentes eram imediatamente contidos, numa resposta veloz e apropriada (sem o uso extremo e desafiador da força policial), o que acaba por acalmar a situação. Os limites de atuação, seja dos torcedores, seja dos policiais é claro para ambas as partes, que se conhecem. A atuação era tão rápida e de sucesso, que outros torcedores nem percebiam que haviam policiais à paisana entre eles. Como os torcedores causadores de problemas eram previamente identificados, facilitava a ação dos policiais durante os jogos, que ficavam atentos aos torcedores problema”. Disponível em: [http://globoesporte.globo.com/platb/pr-torcedor-coritiba/tag/pacificacao-dos-torcedores/].